18 março 2008

O traficante de endorfina

Para começar a semana, segue esta cronica genial de A.Farias, publicado na Folha Online, que todos viciados em endorfina já devem ter passado por situação parecida...
De nada adiantaram as advertências dos amigos, os conselhos dos familiares. O Marinho simplesmente desdenhou as opiniões contrárias. Ele até ria quando diziam que poderia se tornar um viciado em endorfina.Hoje, sabe que tudo era verdade, mas não tem o menor desejo de romper o círculo que o tornou um dependente. Sujeição que o faz se levantar muito cedo, pois o corpo, mesmo no sono, revela os sintomas da abstinência. Então ele tem que pular da cama, vestir-se rapidamente, e sair correndo em busca da satisfação efêmera.No começo, corria poucos minutos e logo alcançava o deleite, próximo da exaustão. Com o passar do tempo, ele se aprimorou e agora é capaz de manter o esforço por mais de uma hora, de forma a prolongar os efeitos dessa substância que deflagra uma sensação de bem-estar já comparada à da morfina. Por causa do vício, ele tem ido com menos freqüência ao botequim e os colegas de copo comentam em voz baixa que o Marinho anda sintetizando uma droga para consumo próprio. Um deles lembrou que havia feito algo parecido na juventude, só que se tratava de uma erva que tentou cultivar no vaso da sala. A mulher do Marinho a princípio não disse nada. Com um certo alívio, considerou que aquilo era melhor do que ter um marido cachaceiro.Mas foi ficando cismada, porque nunca mais o encontrava ao acordar. Acabou ressentida por um lado da cama esfriar antes da hora.-Aí tem truta --concluiu outro dia, quando o flagrou colocando uma roupa de corredor da última moda, feita com tecidos sintéticos especiais, coisa tão cara quanto seus tênis de material superleve, artigo de profissional. -Truta? Não tem truta nem aquele outro peixe de duplo sentido, que esqueci o nome. O que tem é o prazer que eu sinto ao correr --tentou explicar Marinho.-E por acaso eu não te dou prazer? Você precisa ficar correndo fora de casa? Estou me sentindo rejeitada --balbuciou ela com os olhos úmidos.-Calma, eu posso explicar. São prazeres de natureza diferente, coisa que eu não posso encontrar com você. Entende?Ao ouvir essa confissão, a mulher caiu em choro convulsivo. Quando Marinho quis abraçá-la, ela o repeliu e foi em busca do telefone. Tinha que contar tudo para sua mãe.Ele sentiu uma vontade enorme de sair correndo, disparar pelo mundo em busca da tranqüilidade. Só percebeu o que fazia no instante em que amarrava o cadarço dos tais tênis high-tech. Viu que estava sucumbindo ao vício. Seu lar desabava por causa da endorfina.Com uma ansiedade incontrolável, ele olhou desolado para a foto na cabeceira em que aparecia no ócio pacífico de uma rede. Renegou a antiga imagem e saiu do quarto disposto a satisfazer seu desejo a qualquer custo. Iria correr até o shopping mais próximo, coisa para quase duas horas de esforço.Quando voltou, estava suado como nunca e pleno da substância que tanto o subjugava. Trazia nas mãos um embrulho com tudo adequado para que sua mulher também se tornasse uma viciada --tênis, shorts, camisetas e uns óculos esportivos, que as vendedoras acharam muito fashion. O Marinho se sentia um verdadeiro traficante, prestes a aliciar mais uma vítima.Frente ao ardil, sua mulher percebeu que para salvar o casamento teria que se submeter ao infortúnio do marido, compartilhar sua sina. Quando ela calculou o investimento que ele havia feito nos artigos tão chiques e caros, ficou abalada. Só não abraçou e beijou o Marinho porque ele estava imundo e precisava de um banho.

Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintasE-mail: acafaria@uol.com.br


Nenhum comentário: